Antes
de começar a narrativa, devo esclarecer que sou servidor público e que defendo
intransigentemente o serviço público, como uma necessidade para que o cidadão
seja devidamente atendido pelo aparelho estatal. Além disso, embora o servidor
e o serviço público sejam alvos constantes das mais severas críticas, basta ser
publicado um edital para esse mesmo crítico correr para os cursinhos e tentar a
“sorte” de se tornar um novo “barnabé” .
Dado
o caráter bizarro e absurdo do fato, darei nomes bizarros às personagens dessa
verdadeira saga de uma cidadã comum, que teve o azar de precisar de um
documento a ser expedido na Central do Cidadão do barulhento e quente shopping
Via Direta, e teve que enfrentar uma verdadeira epopeia, digna de Gilgamesh,
para ter esse dito documento nas mãos.
Chamemos
a cidadã azarada de Deolinda, que não tem automóvel próprio e que, para enfrentar
a fúria dos burocratas, teve que se servir do sistema de transporte coletivo
que dizem os empresários, atende à nossa população. A saga começa bem antes,
portanto, com a Deolinda sendo empurrada e chacoalhada num ônibus calorento e
fedorento, e andando posteriormente num sol de rachar o crânio loiro da mesma.
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A burrocracia e o "respeito" ao cidadão |
E
quando a azarada Deolinda chega à Central do Cidadão, se depara com o maior de
todos os medos: um servidor público que não serve ao público, mas sim a ele
mesmo. Esse tipo específico de servidor, apesar de todos os avanços que houve
no serviço público, parece empestear as repartições públicas municipais,
estaduais, federais e siderais. E a visão que o cidadão tem desse elemento se
transfere incontinente para o setor público, gerando a máxima que todo liberal gosta:
“se fosse privado não seria assim”.
Deolinda,
a incauta, solicitou a segunda via da Carteira de Trabalho, um documento criado
na década de 40 para que o estado daquela época, ou seja, há mais de 60 anos
atrás, tivesse o controle das relações de trabalho. Essa tal Carteira de
Trabalho, emitida pela Delegacia Regional do Trabalho (DRT) no dito Central do
Cidadão do Via Direta, simplesmente sumiu. Sumiram os dados de Deolinda que
tentou, sem sucesso é claro, entender o que se passava via telefone, uma
invenção de Graham Bell que parece assustar os burocratas.
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A epópeia de Deolinda |
E lá
foi Deolinda atrás da 2ª. Via do maldito documento. Vista como invasora do seu “território”
(a mesa) o servidor público recebeu Deolinda com um misto de ódio e desprezo e
quando esta perguntou o que ocorrera, a servidora agigantou-se e a pobre
Deolinda foi encolhendo sob o olhar ameaçador da agora gigantesca servidora,
que parecia saída do filme The Wall.
A
servidora, de olhar encolerizado, irritou-se com Deolinda sobre o fato, incontestável
é verdade, de que o pedido da cidadã fora simplesmente jogado ao léu. Culpa da
CPU, a Central Processament Unit, bradou a servidora, quase culpando Deolinda
pela quebra do equipamento. A atrevida Deolinda perguntou se “havia jeito”, o
que fez com que a servidora, agora sim irritada por uma pergunta tão imbecil, desse
de ombros e dissesse um lacônico “não tem jeito”.
A
nobre e sofredora Deolinda buscou refúgio na “chefa” da servidora encolerizada,
e lá encontrou um iceberg, que nem sequer se deu ao trabalho de olhar para a
jovem, que insistia na necessidade de ter a 2ª. Via do documento já citado. Diante
da insistência da cidadã, a “chefa”, olhando para o relógio que ainda marcava
16 horas e 30 minutos, reafirmou que não tinha jeito, posto que a distribuição
das fichas, um pedaço de papel que tem uma simbologia significativa, pois
representa a subserviência do cidadão à vontade do “dono” daquele minúsculo
espaço de pode chamado “mesa”, se encerrara.
Diante
dos apelos insistentes a “chefa”, numa atitude magnânima, manda a Deolinda
esperar num cadeira, onde já estava outra prisioneira condenada ao esquecimento,
como todos nós somos quando precisamos de atendimento, quer no setor público,
quer no setor privado. A disputa é pra ver quem trata pior o cidadão.
Passados
60 minutos, a desesperada Deolinda vai caminhando lentamente até a “chefa”, que
ao ver a desgraçada, lembrou que a tinha esquecido. Pegou a tal da ficha e a entregou
a Deolinda e disse um frio “vá lá”, e lá volta Deolinda para a outra burocrata,
a da CPU, que, ao ver a ficha nas mãos da cidadã, explode e diz em alto e bom
som que “as pessoas querem matar ela de trabalhar” e olhando furiosamente para
AS ÚLTIMAS DUAS PESSOAS A SEREM ATENDIDAS, diz em tom de deboche “... sinto
muito, mas vou fazer um intervalo de trinta minutos”, que no linguajar dos burocratas
significa sessenta minutos.
O
epílogo é um retrato revelador do que todos nós passamos e provavelmente
passaremos algum dia. Uma hora depois, a burocrata chega e resolve o tal do
problema de Deolinda em menos de cinco minutos.